Entrevista para o The Onion A.V. Club – Parte I – Douglas Adams
“Acho que a ideia de arte assassina a criatividade.”
D.N.A
THE ONION. Tem muita coisa acontecendo na sua vida. Sobre o que você gostaria de falar primeiro?
DOUGLAS ADAMS. Acredito que existam duas coisas primordiais. Uma delas é que estamos quase acabando esse negócio no qual venho trabalhando, acredito que por volta de dois anos já, chamado Starship Titanic, que é um CD-ROM. Será lançado dentro de poucos meses. A outra coisa é que acabei de aceitar em vender os direitos de O Guia do Mochileiro para a Disney. Então acredito que nos próximos dois anos estarei trabalhando nisso. Estarei trabalhando nesse filme.
O. Conte-nos sobre o Starship Titanic.
D.A. É um CD-ROM, e a coisa mais importante é que ele começou como tal. As pessoas queriam que eu fizesse um CD-ROM sobre O Guia, então pensei, “De jeito nenhum”. Não queria apenas reverter engenharia em uma outra coisa a partir de um livro que eu escrevera. Acho a mídia digital interessante o suficiente por si só para ser capaz de originar algo novo. Porque, falando sério, na hora em que você tem uma ideia, o segundo pensamento que percorre a sua mente logo depois é: “O que é isso? É um livro, um filme, é isso, é aquilo, é um conto, é um cereal matinal?” É sério. A partir daquele momento, sua decisão sobre que tipo de negócio aquilo é determina como ele vai se desenvolver. Então algo será muito, muito diferente se for desenvolvido como um CD-ROM do que se tivesse sido desenvolvido como um livro. Nesse momento, pra ser sincero, estou contando uma mentirinha, pois a ideia como tal, na forma de um parágrafo único, aparecera de verdade em um dos livros do Guia, acho que em Vida, o Universo e Tudo Mais. A razão é que toda vez que eu meio que emperrava na construção do enredo do Guia, eu sempre inventava alguns outros enredos curtos e os dava para o Guia narrar. Então, eis uma pequena ideia que estava repousando ali, e muitas pessoas me disseram, “Oh, você deveria transformar isso num livro”. Parecia ser uma ideia boa demais, e eu geralmente resisto a elas. Mas na verdade descobri que havia uma razão muito boa para eu não estar interessado em fazer de Starship Titanic um livro, pois era essencialmente uma história sobre uma coisa. Pensei nessa ideia e não tinha nenhuma pessoa envolvida nela, e apenas se pode contar histórias sobre pessoas. Então mais tarde, enquanto pensava, “Beleza, nesse momento quero criar um CD-ROM, porque quero justificar o fato de que passo todo o meu tempo sentado brincando com computadores”, eu queria na verdade era transformá-lo em um trabalho próprio de gente grande. Fiquei pensando, o que seria algo bom? Repentinamente percebi que o problema de transformar Starship Titanic em um livro – que era sobre uma coisa, sobre um lugar, sobre um navio – havia de repente se transformado em sua vantagem. Quando se está fazendo um CD-ROM, o que se vai eventualmente criar é um lugar, um ambiente.
O. E o usuário se torna o personagem.
D.A. Exatamente. Uma vez que o lugar começa a se desenvolver, você então coloca os personagens nele. Mas não é algo sobre os personagens, mas sobre o navio. O que eu queria fazer era algo… Bem, ou era muito antiquado ou então muito radical, dependendo da maneira como se encarava aquilo; queria construir uma máquina de conversação dentro do jogo. Há muitos anos, fiz um jogo baseado no Guia do Mochileiro com uma empresa chamada Infocom, que era uma excelente empresa. Eles estavam criando jogos cultos, inteligentes e perspicazes baseados em textos. Sabe, há vários milhares de anos de cultura humana dizendo que se pode fazer muita coisa com um texto, e colocar o elemento extra da interatividade deve apenas acrescentar às possibilidades. Transforma-se o computador em um narrador e o jogador no público, como nos velhos tempos quando o narrador literalmente respondia ao público, ao invés de apenas ter o público respondendo ao narrador. Eu me diverti muito, na verdade, trabalhando naquilo. Simplesmente adorei construir aquelas conversas virtuais entre o jogador e a máquina. Sendo assim, achei que seria incrível tentar estender aquilo e fazer ainda mais coisas em um jogo de gráficos modernos. Gostaria de ver se alguém conseguiria pegar aquela tecnologia de conversação antiga e fazer com que personagens falassem de verdade. Coloca-los em um ambiente e ver aonde aquilo iria chegar. Então começamos a enfrentar o problema de ser capaz de falar com os personagens, afinal tudo o que se faz envolvendo a linguagem simplesmente se transforma em um grande problema. Pra começo de história, queríamos fazer isso por meio do que seria um texto para voz, que lhe dá a vantagem de que se tem muito mais flexibilidade em construir orações instantaneamente. Por outro lado, todos os personagens pareciam noruegueses com concussão cerebral, o que percebi como uma desvantagem. Então, por fim, percebemos que teríamos que realizar falas pré-gravadas. Aí pensei, “Isso é terrível, pois apenas se tem um número limitado de respostas. Simplesmente vai ser… não sei se gosto disso”. Sendo assim, a conclusão a qual chegamos para resolver o problema, ou gradualmente resolver o problema, foi que a quantidade de falas pré-gravadas apenas aumentou, e aumentou, e aumentou, e aumentou. Acabamos de realizar mais duas horas de sessão de gravação essa manhã. Temos agora algo por volta de dezesseis horas de pequenos trechos de conversação: pequenas frases, orações, meias-orações, e todas as coisas que a máquina coloca junto instantaneamente em resposta ao que você digita. Por muito tempo não estava funcionando muito bem, mas agora, nas últimas duas ou três semanas, começou a dar certo, e começou a ficar assustador. As pessoas vêm e dizem, “Cara, não consigo imaginar como isso vai funcionar. Que tal se você perguntar isso ao jogo?” E eles o fazem, e os queixos caem. É incrível. Pessoas vêm e passam horas apenas sentadas, trancafiadas em conversas com esses personagens. Adianto-me em dizer que essas dezesseis horas de diálogo foram escritas por uma pequena equipe nossa. Eu escrevi grande parte dos diálogos, outras pessoas escreveram algumas partes também, e todos nós trabalhamos juntos para uni-las. Foi muito marcante quando começou a funcionar. De repente tínhamos um mundo habitado. Robôs muito estranhos e danificados rastejando por todos os lados, todos com um conjunto amplo de opiniões, atitudes, ideias e histórias malucas, e que sabem sobre coisas totalmente inesperadas. E você pode conversar com todos eles.
O. Não te preocupa o fato de que depois de todo esse trabalho, as pessoas possam não tratá-lo com a importância que dariam se fosse, digamos, um filme ou um livro? Que não vão vê-lo como uma forma de arte?
D.A. Espero que isso aconteça. Me preocupa muito essa ideia de arte. Desde que me formei em literatura inglesa, tento evitar a ideia de se fazer isso. Acho que a ideia de arte assassina a criatividade. Esta foi uma das razões de eu realmente querer fazer um CD-ROM: ninguém vai levá-lo muito a sério e, conseqüentemente, pode-se passar desapercebido com um monte de coisas boas. É engraçada a freqüência com que isso acontece. Acho que quando os primeiros romances foram criados, a maioria deles era uma espécie de pornografia; aparentemente, uma grande parte da mídia começara como pornografia e crescera a partir daí. Me apresso em dizer que este não é um CD-ROM pornográfico. Antes de 1962, todos achavam que a música pop era um tipo de… Ninguém jamais, nem remotamente, teria chamado aquilo de arte; então, eis que aparece alguém, e é tão incrivelmente criativo naquilo, simplesmente porque ama aquilo de paixão e acredita que é a maior diversão que se pode ter, e dentro de poucos anos se tem Sgt. Pepper’s e outros mais; de repente todo mundo está chamado aquilo de arte. Na minha opinião, a mídia alcança sua fase mais interessante antes de qualquer um pensar em chamá-la de arte, quando a maioria das pessoas ainda pensa que é apenas um monte de porcaria.
O. Mas digamos daqui a vinte anos, você gostaria de ser reconhecido como um dos pioneiros a utilizar o CD-ROM como arte?
D.A. Apenas gostaria que um monte de pessoas o tivesse comprado. Em primeiro lugar pela razão mais óbvia, e em segundo é que se for popular, se as pessoas realmente gostarem e se divertirem com ele, você sente que fez um bom trabalho. E se algumas pessoas quiserem se juntar e disserem, “Oh, isso é arte”, que seja então. Não me preocupo muito com isso, mas acredito que é para outras pessoas decidirem sobre o feito. Não é o que se deve almejar fazer. Não há nada pior do que você sentar para escrever um romance e dizer, “Bem, vou fazer algo de valor artístico elevado”. É engraçado. Li uma coisa outro dia por absoluta curiosidade: Thunderball, que é um dos livros do James Bond que adoraria ter lido quando tinha, não sei bem, uns quatorze anos, apenas folheando-o em busca das partes em que ele coloca sua mão esquerda sobre os seios dela e diz, “Oh meu Deus, que excitante”. Mas aí pensei, bem, James Bond se tornou um baita de um ícone de nossa cultura pop dos últimos quarenta anos, seria interessante ver como ele era de verdade. E o que me levou a fazer isso, além do fato de que por acaso achei uma cópia jogada por perto, foi lendo alguém falando sobre Ian Fleming e dizendo que ele almejara não ser literário, mas literato, o que é uma diferença muito, muito grande e crucial. Então pensei, bem, deixe-me ver se ele conseguiu fazer isso. É interessante, porque foi na verdade muito bem escrito como uma criação artística. Ele sabia como usar o idioma, como fazer as coisas funcionarem, e escreveu bem. Mas obviamente ninguém o chamaria de literatura. Todavia, acredito que se consiga a maior parte dos trabalhos mais interessantes feitos em áreas onde as pessoas não acham que estão fazendo arte, mas estão meramente praticando um ofício, e trabalhando como bons artesãos. Ser letrado como um escritor é um bom ofício, é saber o seu trabalho, é saber como usar suas ferramentas propriamente e não danificar as ferramentas conforme as utiliza. Descubro que quando leio romances literários – sabe, com “L” maiúsculo – acho que uma grande parcela não faz sentido. Se eu quero conhecer algo interessante sobre a maneira como os seres humanos funcionam, como eles se relacionam e como se comportam, encontrarei uma grande quantidade de novelistas policiais femininas que fazem isso de maneira muito melhor, como Ruth Rendell por exemplo. Se eu quiser ler algo que literalmente me dê algo sério e fundamental para pensar a respeito, sobre a condição humana, se preferir, ou sobre o que estamos fazendo aqui, ou o que está se passando, então é melhor que eu leia algo de um cientista da ciência da vida, como Richard Dawkins. Percebo que a agenda dos problemas importantes da vida mudou-se dos romancistas para os escritores de ciências porque eles conhecem mais. Geralmente fico com um pé atrás em relação a qualquer coisa que acha que é arte enquanto está sendo criado. Agora quando a questão é o CD-ROM, apenas queria fazer o melhor possível, e me divertir o máximo enquanto o criava. Acho que ficou muito bom. Sempre tem pedaços que se fica preocupado por não estar tão perfeito, mas pode-se ficar preocupado com algo para sempre. A coisa está boa pra caramba.
[…] A primeira parte da entrevista pode ser lida aqui. […]