A invasão
Nosso lugar foi invadido há dois dias atrás. Nossa comunidade não é muito organizada, e com a chegada dos intrusos todos ficaram alvoroçados. É bem verdade que aguentamos por muito tempo sem alimentação e que somos de certa forma fortes, apesar de nossa aparência fraca, mas estamos com muita fome e a solução pode estar nesse pequeno grupo de dez pessoas.
Eles se fecharam em um lugar com grades altas e têm armas para se defender. Isso já é uma grande vantagem. Mesmo assim, nossa comunidade é maior. Quando nos unimos nossa força é descomunal. Infelizmente não posso dizer o mesmo da inteligência da maioria.
Estou parado olhando o lugar. É um depósito abandonado. Vermelho e com a pintura descascando, é um prédio decadente e antes mesmo do incidente, ninguém o ocupava. Em pouco tempo eles terão de sair para buscar comida, mas nós não saímos, apenas esperamos. A paciência é uma característica muito forte em todos nós. Todos de pé, somente olhando o prédio fechado e escuro. Nenhuma movimentação, nenhum ruído. Vez em quando, alguns sons em outra parte da pequena cidade fazem com que nos separemos.
Ouço uma agitação além do normal no portão principal. Uma garota loira, com no máximo 20 anos e baixa para sua idade, bate nas grades violentamente com uma barra de aço. Uma provocação desnecessária, eu penso, mas parece que somente eu vejo dessa maneira, pois todos os outros, meus colegas, companheiros de bando e até mesmo minha mulher vão furiosamente até a menina tentando alcançá-la.
Isso está errado. Algo não me cheira bem, e não é porque não tomo banho há mais de dois anos. Quando olho para o fundo do depósito, mesmo com a visão prejudicada pela doença posso ver três integrantes do grupo tentando fugir por cima da grade. Foram apenas duas horas de espera e não imaginava que eles demorariam tão pouco para recorrer a isso. Eles colocaram uma coberta por cima do arame farpado e agora saltam para o lado de fora, mas por conta da distração ocasionada pela menina não há mais nenhum de nós naquela área.
Eu sigo para a rua lateral do barracão. Ando sob as sombras para que eles não me vejam. Meus passos são lentos comparados aos deles, mas eu sigo incansavelmente, mesmo percebendo que ninguém dos meus está seguindo para me ajudar. Eu nem tentei chamar nenhum deles, pois seria inútil. Eles ficam cegos quando estão famintos, e aquele grupo com certeza tem muita carne da melhor qualidade, e posso perceber isso pelo estado de saúde deles, que é razoavelmente bom.
Eles pararam na mercearia, mas o que eles não sabem é que está vazia. Nada. Quando tudo começou, saquearam todos os mercados, farmácias e até mesmo lojas de carros. Lembro-me de passar por aqui e ver o dono do estabelecimento chorando por ver sua pequena e azul propriedade ser destruída. Eu os vejo entrar e sigo para o fundo do estabelecimento, onde sei que há uma entrada aberta. Ouço o barulho de tiros. Provavelmente disparados contra as correntes que trancam a porta. Inconsequência do jovem japonês de cabelos compridos que carrega uma pistola e foi repreendido por seu colega loiro e alto. O velho que está junto a eles não falou nada e eles entraram no pequeno mercado.
Entrar ali agora seria suicídio, e com o descuido do garoto, um número considerável de colegas virá. Ouço finalmente vários passos de pelo menos 20 dos meus companheiros. A entrada aberta da mercearia fica nos fundos, onde era antigamente a sala do dono. Está tudo muito escuro e isso é perfeito. Cubro-me com as sombras e espero algum movimento. Do outro lado da parede, os três homens estão simplesmente desesperados, pois perceberam a chegada do meu pessoal.
Ouço o som da maçaneta e fico a postos. Quando novamente o mais jovem deles, o japonês, se descuida por entrar na sala sem ao menos analisá-la, pulo para cima dele rapidamente, mordendo sua nuca. Uma mistura de carne, sangue e ossos enche minha boca e sinto um prazer indescritível com este sabor. Ele grita em vão:
-Um dos sujos me mordeu Marcos, me ajude! – Nesse momento ele tenta, com todas as suas forças – que são poucas – livrar-se de mim. Em poucos segundos ele já está de joelhos e seus colegas não o ajudaram porque foram atacados por todos os lados também. Meus irmãos famintos arrancavam deles as nossas partes favoritas, e havia uma grande confusão para comer o cérebro e os demais órgãos internos. Ninguém percebeu que eu estava ali, com um banquete somente para mim, e eu nem queria comer tudo aquilo. Queria poder avisar a todos, mas só posso grunhir. Se eu pudesse carregar o corpo até minha mulher e filha, seria ótimo, pois não os vi no meio dessa multidão.
Quando eu pulei sobre o japonês, o carreguei até o canto da sala e então resolvi deixá-lo escondido para quando me desse fome novamente. Em pouquíssimo tempo, só restaram ossos dos dois outros companheiros corajosos, e a minha ideia de armazenamento foi frustrada, pois quando desencanaram do loiro e do velho, conseguiram sentir o cheiro do outro rapaz.
Enquanto eles se amontoam para passar pela porta, já estou indo em direção ao depósito, onde sete pessoas esperam desesperadas seus companheiros chegarem vivos. Novamente me posiciono em frente ao depósito. É aí que eu me deparo com corpos caindo. Eles estão atirando em meus irmãos, talvez por vingança, mas isso é inútil. Somos muitos, e tudo o que eles podem fazer é gastar toda a munição que têm.
Não sei por qual motivo sou tão mais inteligente do que estes outros pobres doentes, mas isso não importa, porque eu ainda tenho a maldita necessidade de me alimentar com tudo o que se locomove.
Eu só queria voltar, poder voltar ao normal, mas olho em volta e percebo que estamos em vantagem, não apenas nessa cidade, mas em todo o planeta. Em breve, tudo o que restará serão seres frígidos caminhando sobre a terra. E eu estarei lá para ver isso. Não quero salvação, o céu ou o inferno. Só preciso da minha família. Esta é a minha família. Em no máximo um mês todas estas pessoas no depósito estarão mortas, e pagarão por todos os meus irmãos que elas estão matando.
Eles invadiram nossa cidade, mataram os que eu amo como se não fossem nada e querem sair ilesos, mas isso não acontecerá, pois do lado de cá dessas grades há alguém que pensa como eles.
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