O RPG Secreto Baseado em Douglas Adams Que Pessoas Jogam Há 15 Anos

Douglas Adams bolou a Starship Titanic em 1982 em um texto de meia página no livro A Vida o Universo e Tudo o Mais, terceiro livro da “trilogia de cinco” d’O Guia do Mochileiro das Galáxias.

Essa nave azarada serviu de alerta de que naves movidas a improbabilidade infinita correm o risco de que coisas infinitamente improváveis aconteçam – como ser apagado da existência, por exemplo. Muitos anos depois, lá pro meio dos anos noventa, Adams voltou a essa ideia quando ele estava procurando por algo em que basear um jogo de CD-ROM. O projeto eventualmente viu a luz do dia em 1998, emergindo como uma aventura gráfica de conversa chique chamada “Spookitalk” e dublado pelos ex-Pythons Terry Jones e John Cleese, assim como o próprio Douglas Adams.

A Starship Titanic, a maior já construída, pegou impulso, deu uma seduzida aqui, uma cambaleada ali, afastou-se violentamente e, no instante em que a multidão estava para gritar em um incrédulo terror, ela foi obliterada em um evento que mais tarde seria conhecido como Massiva e Espontânea Falha de Existência (MEFE). Mas isso está longe de ser o fim da história. De fato era apenas o começo. O aparecimento – e desaparecimento – desse ímpar veículo espacial iria, inadvertidamente, criar um perdurante meta-game que não possui regras e nem fim, e isso ainda acontece no canto de um semi-abandonado estacionamento na internet.

Livro Starship Titanic

Como cofundador e diretor criativo do desenvolvimento de The Digital Village (A Ilha Digital), Adams estava envolvido nos dois anos de desenvolvimento do jogo, mas o script do jogo em si já estava, a maior parte, escrito por Neil Richards, Debbie Barham e Michael Bywater (o qual era, alegadamente, a inspiração para o personagem Dirk Gently). Um livro sobre a Starship Titanic estava autorizado a ser lançado junto ao jogo – isso era pra ter sido escrito por alguma outra pessoa baseado num esboço de Adams, mas, eventualmente, o escritor d’O Guia do Mochileiro das Galáxias decidiu escrever ele mesmo. Só que não o fez. Vivendo a sua reputação de demorar uma eternidade, Adams admitiu apenas três semanas antes do prazo de entrega do livro que não escreveu uma sílaba. No fim o livro Starship Titanic foi escrito em uma furiosa cascata de palavras por nada mais, nada menos que Terry Jones (que disse ter escrito tudo do zero).

E então, no finalzinho dos anos noventa, ambos jogo e livro foram para as prateleiras das lojas, na forma de uma improvavelmente grande e elaborada caixa mantendo o espírito de jogos para computador da época e, por último, ainda quente por causa da franca digitação. A propósito, o jogo em si estava tão atrasado que os discos tiveram que ir voando até Concorde para não perder o prazo.

Mas talvez o legado da nave Titanic mas duradouro não é nem o livro, que não é mais vendido, nem o jogo, que não roda em computadores modernos graças à implacável marcha dos sistemas operacionais. Em vez disso, em algum cantinho aconchegante da Rede Mundial de Computadores amontoa-se uma pequena comunidade de indivíduos parecidos em sua forma de pensar que tomaram para si a ideia da nave Titanic e correram tão rápido quanto suas pernas digitais permitiram. Eles não apenas jogam Starship Titanic, eles criaram um jogo.

O original, e muito simples site Starship Titanic de antes do lançamento do jogo.

Antes do site da Starship Titanic que você pode acessar agora, existia uma versão completamente diferente e mais básica que era lotada de textos de Bywater e Richards. Esse site era suplantado pela mais nova e mais chamativa versão antes do lançamento do jogo, mas ainda existe se você souber onde procurar.

O site foi criado pelo desenvolvedor de The Digital Village Yoz Grahane, que se lembra como se fosse ontem do seu primeiro encontro com Adams enquanto ele estava cumprindo seu não oficial dever de conselheiro de comida judia.

“O presidente da SSI estava chegando e a administração estava em pânico porque ele era judeu e não sabiam que tipo de comida dar a ele. Então me pediram para ir comprar comida judia, e eu tinha que guiá-lo pela mesa e mostrar o que ele poderia comer. Mais tarde eu ouvi Douglas – que era um convicto ateu – queixando-se sobre o incidente para Alison Humphrey, o produtor digital na TDV, dizendo ‘pleno século XX, caramba!’ Alison respondeu ‘É religião, Douglas, não depende do século'”.

Yoz Grahame, criador do Starlight Lines fórum (foto cortesia de Yoz Grahane).

Quando não estava sendo conselheiro de comida judia, Yoz ocupava-se adicionando conteúdo ao nascente site. E uma parte essencial foi um fórum de empregados da companhia fictícia Starlight Lines, os donos da Starship Titanic.

“A ideia era criar um Fórum Superior de Administração de apenas leitura no qual você poderia ver alguns dos personagens-chave da história dando nos nervos um dos outros. Mas percebemos que deveria ser um fórum postável para empregados de baixo nível, então eu passei metade de um dia programando um estupidamente básico sistema de fórum”.

Fãs que assinavam para receber e-mails sobre o jogo que estava para vir recebiam o seguinte e-mail:

ASSUNTO: Acesso à Área Confidencial de Projetos da Titanic

PARA: Toda a equipe da Star-Struct

DATA: Terça-feira, dia 12 de Carpre, 122 R.E. (25:06)

Atendendo repetidos pedidos dos membros da equipe de construção da Starship Titanic, foi decidido oferecer acesso ao restrito Intranet Site do Projeto Titanic através do site de acesso público mantido por nossos agentes da Starlight Travel. O site interno restrito pode, com efeito imediato, ser acessado do site da Starlight Travel sem a necessidade de passar pelo sistema de segurança da intranet.

Você encontrará links relevantes na home page e no fim do tour pela nave. Simplesmente clique na logo abaixo da linha “Star-Struct inc. (uma subsidiária totalmente pertencente à Starlight Lines Corp.) e será pedida a sua senha de nível 6, que é:

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Note que os links NÃO estão destacados, para prevenir que pessoas percam seu tempo na rede com desesperançosas tentativas de logon ou hack.

ESSA SENHA E ESSAS INFORMAÇÕES AUXILIARES PERMITEM ACESSO À UMA ÁREA CORPORATIVA PROTEGIDA E CONFIDENCIAL. POR FAVOR MANTENHA A INFORMAÇÃO A SALVO E NÃO A COMPARTILHE COM TERCEIROS.

– Dave “Steve” Stevedave (Equipe de Código da Corporação)

Este era acompanhado de um segundo pedindo desculpas pelo “vazamento acidental de e-mail” e pedindo aos clientes para não clicarem no link, e então um terceiro e-mail dizendo que Dave Stevedave havia sido rebaixado para o Porão Vazio da Terceira Classe. Yoz lembra-se que “Funcionou perfeitamente – tão perfeitamente que algumas pessoas responderam afirmando que não olharam o site”.

E então Yoz se esqueceu completamente do fórum, mas seis meses depois aconteceu de ele dar uma olhadinha. E lá estavam milhares de posts.

Tendo em mente que o fórum estava enterrado fundo dentro do site e era (meio que) protegido por senha, esse era um resultado fenomenal. Mas ainda mais fascinante foi que o fórum evoluiu como uma extensão do jogo em si.

Usuários do fórum criaram empregados fictícios e passageiros a bordo da Starship Titanic e começaram a atuar como eles. Alguém bolava um improvável cenário tipo Adams e os outros se comportavam como um personagem nele, resultando em linhas de texto enormes e complexas e piadas internas que se desenvolveram e se diversificaram ao longo dos anos. E esse estranho mundo fictício apareceu de forma completamente espontânea sem qualquer envolvimento de Douglas Adams ou The Digital Village. De fato, Yoz ficou tão surpreso quanto qualquer outro quando tropeçou por lá “Foi como ignorar a gaveta de vegetais da sua geladeira por um ano, e então abri-la para encontrar um bando de sensíveis e graciosos tomates trabalhando ocupados em sua terceira opera”, ele disse.

Tony Marks comprou o jogo da Starhip Titanic e descobriu o fórum relativamente cedo, no entanto ele o achou bastante confuso “Para começar, eu não tinha muita certeza do que estava rolando, mas quando tomei um tempo e tentei assimilar o que estava acontecendo, percebi que lá haviam um monte de personagens razoavelmente bem desenvolvidos com ricos backgrounds. A qualquer instante haviam cinco, talvez mais, histórias individuais rolando, e gradualmente me vi mais interessado nas tramas que se desenvolviam”.

Tony começou a postar como The Informage, um personagem “Que era levemente baseado no Q do universo Star Trek: onipotente, mas basicamente cavaleiro”. Ele se lembra carinhosamente de jogar sinuca com planetas, tão quanto da vez em que um ser da “dimensão de dados” chamado Quinrex começou a digitalizar toda a tripulação. Mas talvez sua história preferida foi uma em que a nave voltou para o momento do Big Bang e encontrou uma hamburgueria.

Para Carolyn Willborn foram muitos momentos engraçados para escolher apenas um. No entanto ela se lembra ternamente da Primeira Guerra Gerbil. Carolyn tropeçou pelo fórum de empregados não muito depois de sua criação enquanto procurava por velhos textos de aventura d’O Guia do Mochileiro das Galáxias. Ela rapidamente adotou o nome de Koening @ Kamar Gwah de Loop, o qual ela descreve como: “Um empregado baixinho de duas cabeças que estava preso em seu escritório porque os robôs de serviço arrancaram o chão em frente à sua porta. Eu costumava trocar o nome que vinha primeiro na assinatura dependendo de qual cabeça estava ‘falando’. Lamar era o da esquerda”.

Como em qualquer boa história, os personagens se desenvolviam com o tempo. Eventualmente Lamar e Koening se divorciaram. Koening conseguiu custódia da maioria dos órgãos internos e , mais tarde, acabou se tornando um ser multidimensional. The Informage, por outro lado, montou uma bem sucedida empresa de trocas com seu alterego da dimensão de dados, Image. Um grande evento foi o casamento de Goblin, o garoto do chá, com a Unidentified Girl in Pigtails (Garota Não Identificada de Rabo de Porco), ou UPiG. Eles tiveram um filho que chamaram de PigPig.

Um dos passatempos preferidos dos empregados da Starlight, quando não estavam escorregando entre realidades ou ficando presos em loops temporais, era o Bok – um tipo de mistura entre xadrez e poker da alta dimensão. Na prática, o jogo era mais como Mornington Crescent na rádio “I’m Sorry I Haven’t a Clue” (Me Desculpe, Não Faço a Menor Ideia). Um aparentemente incompreensível jogo que evoluía espontaneamente. As jogadas mais comuns incluíam “The Doodlenut Draw”, “Tha Table’s Gone” e “The Royally Flushed Jabberwock”. Carolyn também se lembra com carinho das longas e bem vividas horas que passou zoando um infeliz membro da tripulação chamado Bystander; fazendo-o entrar em uma câmara de pressurização e então descarregando-o para fora da nave. Isso o conseguiu o título de “Membro Mais Evacuado”.

Yoz atribui o sucesso do fórum ao quão próxima a comunidade se tornou. Como era difícil de encontrar, o número de membros ativos era sempre bem pequeno, e isso dava uma sensação aconchegante diferente dos grandes e assustadores fóruns e redes sociais que se formavam na época. Isso também significava uma certa imunidade à trollagem. O ocasional usuário mal intencionado que quebrava a realidade fictícia era varrido como um ataque interestelar de spam.

Talvez, surpreendentemente, um dos pontos mais fortes do fórum era sua simplicidade. Como resultado de Yoz o ter criado em uma tarde com o que ele admite ser “Um dos piores códigos que já escrevi”, a versão original era extremamente simplista, mas isso funcionou como uma vantagem. Tony Marks se lembra que a falta de um botão para um preview do post levou a algumas linhas de texto divertidas: “Por exemplo, nós tínhamos toda uma sátira sobre dwogs (tipo um cachorro, dog) assim como de deck paltes (pratos, plates). O engraçado era que sempre teria alguém que cometeria um erro assim e faria algo incrível com isso!”.

De fato, a comunidade gostou tanto da simplicidade que resistiram a quaisquer melhorias. Em um determinado momento Yoz adicionou BBCode (Bulletin Board Code) ao fórum, e então os usuários poderiam formatar seus textos com itálico, negrito e tudo o mais. Para seu desapontamento, ele percebeu que dificilmente alguém usava as novas funções. Acabou que um dos atrativos de ser forçado a usar texto “cru” era que as pessoas precisam ser muito mais criativas quanto a como chegarão onde querem, de forma semelhante à forma que o Twitter força a criatividade restringindo o número de caracteres. Como Yoz apontou “Comunidades crescem no molde em que são inseridas… mas eles quase nunca moldam como você imagina”.

Com a morte da The Digital Village no início dos anos 2000, o futuro do fórum estava em risco, para o alarme dos seus habitantes. Carolyn Wilborn acabou escrevendo um longo e sentimental e-mail para Yoz em defesa do fórum. Aqui está um resumo:

Muitos, talvez a maioria, das pessoas assistem TV para relaxar. Elas querem que contem uma história para eles e isso é normal, bom, mas na minha experiência com o fórum, vi algo muito mais interessante. Enquanto produtores trabalham para achar uma forma de brincarmos com suas criações, nós estamos ocupados criando nossas próprias. A StarStruct Employee Forum é ficção interativa. Nós não sentamos e discutimos como vai ficar o jogo ou como nós gostamos do livro. Nós criamos personagens, os colocamos na nave, inventamos enredos, conflitos, e escrevemos algo como uma história. Vez ou outra era caótico e frustrante, mas era (é) ótimo. Nos envolvemos e amadurecemos como personagens. Ouvíamos o que os outros falavam que estavam fazendo e reagíamos ou ignorávamos. Fomos invadidos, lutamos em guerras, fizemos marketing de produtos, argumentamos, fingíamos comer e festejar. Pode ser que toda história tenha seu fim, mas eu espero que não.

Yoz acabou se tornando o salvador do fórum. Quando The Digital Village morreu, ele começou a hospedar ele mesmo o fórum, e tem sido seu guardião desde então, mantendo o domínio no ar e fazendo ajustes quando necessário. Mais tarde se mudou para Linden Lab, o criador de Second Life e, atualmente, ele está em 18F (https://18f.gsa.gov/), onde está engajado na imensa tarefa de enfeitar a casual rede de websites governamentais americanos.

Apesar da longa dedicação de Carolyn e outros membros, o número de pessoas no fórum tem decaído gradualmente ao longo dos anos. A própria Carolyn eventualmente saiu, no entanto ela admite ainda pensar no fórum as vezes. Tony da créditos a Yoz por manter o fórum funcionando por mais tempo do que ele pensou ser possível, e costuma dizer que apesar das muitas risadas e toda uma série de reinícios, ele “Ainda via um pouco de vida nele” um pouco antes do domínio mais recente expirar. Yoz recentemente criou uma nova home para o site em http://starlightlines.net.

Mas apesar de sua estatura diminuída, o fórum de empregados da Starlight Lines durou muito mais que o jogo que o inspirou. Yoz atribui isso em parte às “infinitas possibilidades” desse reality game alternativo. Mas ainda afirma também que foi a proximidade do grupo o que manteve as pessoas voltando ao fórum.

“A básica e de baixa escala essência dele lembra às pessoas de quando elas acessaram pela primeira vez à internet, quando ela era um lugar muito mais simples e amigável. Ainda existem muitas, mas muitas comunidades como essa por aí”.

E em algum canto da internet, entre reinícios e domínios expirando, uma sociedade secreta ainda está pilotando a Starship Titanic.

 Via Kotaku.au